Sunday, September 26, 2010

         

Escuta. Eu vou te sussurrar uma viagem.
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Talvez porque fosse escuro do outro lado das janelas enormes e altas. Talvez por causa de uma certa nostalgia típica de início de primavera em terras longe demais dos trópicos, ou até mesmo pelos efeitos ácidos do jazz na vitrola e do vinho barato comprado discretamente em horas ilegais na adega do turco ali do lado, ou quem sabe uma nostalgia temporária causada pela solidão de exílio voluntário que já parecia durar por uma longa eternidade. O fato é que súbitamente eu me lembrei de pernas, de pêlos, bigodes e de você. Um nó. Na garganta.
O trajeto do líquido rascante, Les Allées de Cantemerle, o aveludado suave e delicado, encaracolado, tépido e perfumado, na mucosa absorvente da boca, nas reentrâncias obscuras da língua... Você nunca vai saber que eu desenvolvi uma maneira de provar o vinho com os dedos, de mergulhar os dedos no copo, de fazer movimentos circulares lentos, de retirar os dedos escorrendo vermelhos, de lamber o vermelho dos dedos. E de repetir o mergulho. De repetir o mergulho. De repetir o mergulho.
Você não vai saber. Que eu melhorei muito minha cultura musical, que ando ouvindo com muita atenção coisas absurdas, coisas novas, coisas muito velhas, que adoro a guitarra nos dedos elegantes do René Thomas.
Fez um dia lindo de sol hoje por aqui. E eu devia ter ido me esticar lagartixa na grama quente do London Fields, ou caminhar quase africano pelo Broadway Market, mas eu ando tendo dias introspectivos, vinhos baratos, jazz.
Vinhos baratos viraram uma metáfora elaborada, a ironia. Eu não posso ter certeza do seu gosto em vinhos, ou seu gosto em mim. Mas eu finjo me lembrar perfeitamente de uma gota merlot na ponta de um bigode, de lábios quase roxos. Me lembrar de músculos exatos na magreza do osso. Movimentos longos, masculinos, répteis. De dias quentes, solares, de suores, pelos, dedos em movimentos circulares na pele morna da noite.

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